“NA MORTE SOMOS FORÇADOS A DEIXAR-NOS CAIR RADICALMENTE NAS MÃO DE DEUS. EXERCITAMOS ESSE ATO
DE LIBERTAÇÃO DURANTE TODA A VIDA. AQUILO QUE ACONTECE NA MORTE SEMPRE JÁ ESTÁ
PRESENTE NA NOSSA VIDA, ENTÃO O HOMEM DE FATO JÁ ESTÁ NA MORTE A PARTIR DO
MOMENTO EM QUE COMEÇOU A EXISTIR NESTE CORPO”.
A nossa vida
inteira consiste de momentos em que precisamos abrir mão de algo. Algo novo só
pode crescer quando abrimos mão de algo velho, nascimento e morte estão interligados.
O novo só pode nascer quando algo velho morre, a criança só nasce quando a mãe
libera.
Ela só pode amadurecer se ela estiver disposta a abrir mão da sua infância. Ela só pode se tornar uma pessoa adulta se abrir mão da juventude. A nossa vida inteira nos desafia a abrir mão das nossas conquistas, dos nossos bens, da nossa saúde, da segurança e do papel que assumimos na vida. Os pais precisam libertar os filhos. A vida só se desenvolve na dialética entre aceitação e entrega.
Precisamos aceitar aquilo que nos é dado. Precisamos aceitar-nos a nós mesmos, com nossa biografia e nosso caráter, e precisamos abrir mão de nós mesmos. Essa é a tarefa mais difícil. Pois é a nós mesmos que nos agarramos com maior força. O propósito dessa entrega é o renascimento. A morte é a conclusão desse processo de entrega e é, ao mesmo tempo, o renascimento de algo.
Na morte, Jesus procura refúgio no Pai: “Em ti, Senhor, me refugio: que eu jamais seja decepcionado! Livra-me por tua justiça” – Sl 31,2.
Ele sabe que Deus é a rocha em que pode confiar e que o livrará de sua aflição. Morrendo, mas cheio de confiança, Ele entrega seu espírito nas mãos do Pai – v.6. Em meio à sua agonia, porém, Jesus também sabe: “Mas eu confio em ti, Senhor. Afirmo que só Tu és o meu Deus. Meu destino está em tuas mãos” – vv15 e 16.
E ele confia que Deus fará brilhar sua face sobre Ele na hora da sua morte – v 17. E que Ele aprovará a bondade do Pai para com Ele. Nossa morte também será a combinação destas duas coisas; de um lado, o medo, a solidão, a incompreensão, o conflito entre o apego e a entrega; de outro, porém, a confiança e a certeza da proximidade reconfortante de Deus.
Em nossa morte também relutaremos em abrir mão de nós mesmos e da nossa vida para entregarmo-nos nas mãos de Deus e confiarmos-nos ao seu amor.
Na morte todo ser humano encontrará Deus em si mesmo em sua verdade plena. E ele verá a face humana de Deus em Jesus Cristo. Na morte vivenciarão como o véu é retirado e reconhecerão o verdadeiro mistério, o mistério do Deus trino e a imagem de Jesus Cristo.
Assim também toda pessoa reconhecerá a face de Jesus Cristo que, já nesta vida, veio a conhecer em seus irmãos - Mt 25, 31s. Ele reconhecerá em Cristo a razão de todo o seu ser, mesmo se nunca tiver ouvido falar dele. E nesse encontro com Deus se decidirá seu futuro eterno.
Sempre apareceremos diante de Deus como servos inúteis de mãos vazias. Basta que estendamos essa mãos vazias para Deus, e Ele as encherá. Mas precisamos nos exercitar na entrega a Deus já na vida para que consigamos fazê-lo também na morte.
A morte é a
ousadia da fé de entregar-se cada vez mais às mãos amorosas de Deus. E ela me
desafia aqui e agora a buscar o meu fundamento em Deus, não no sucesso, não no
reconhecimento, mas no amor de Deus que me sustenta.
Para mim, a morte é o
convite a viver cada momento de forma intensa e consciente, de começar a tecer
a eternidade aqui no tempo, a desprender-me de mim mesmo para me entregar
completamente ao Deus presente.
A morte é para
mim expressão da esperança de que Deus a razão da minha existência aqui nessa
vida e após ela, garantindo-me que não cairei num vazio, mas que os braços do
ser verdadeiro me segurarão, que poderei esquecer-me na contemplação de Deus e,
esquecendo-me de mim mesmo, poderei ser completamente aquele que Deus imaginou
em sua eternidade.
E então, verei e desfrutarei de tudo aquilo que procurei
toda a minha vida”.
Cf.: Grün, Anselm
Morte: a experiência
da vida em plenitude, tradução de Markus A. Hediger – Petrópolis, RJ Vozes,
2014, pp9-113
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